A GLOBALIZAÇÃO DA POBREZA E A NOVA ORDEM MUNDIAL
A globalização da pobreza está a
processar-se durante um período de rápidos avanços tecnológicos e
científicos. Enquanto estes últimos contribuem para o incremento
substancial da capacidade potencial do sistema econômico de produzir os
bens e serviços necessários, os níveis acrescentados de produtividade
não se traduzem numa correspondente redução dos níveis de pobreza
global.
INTRODUÇÃO
No período do pós-guerra-fria, a
humanidade atravessa uma crise econômica e social de escala sem
precedentes que está a conduzir ao rápido empobrecimento de vastos
setores da população mundial. Assiste-se ao colapso de economias
nacionais e a um aumento alarmante do desemprego. Na África subsaariana,
no Sul da Ásia e em partes da América Latina, têm-se verificado surtos
de fomes a nível local. Esta «globalização da pobreza» — que, em grande
medida, fez retroceder as realizações alcançadas com a descolonização do
pós-guerra — teve o seu início num Terceiro Mundo marcado pela crise da
dívida no princípio dos anos 80 e a conseqüente imposição de reformas
econômicas nefastas pelo Fundo Monetário Internacional.
A Nova Ordem Mundial é sustentada pela
pobreza humana e a destruição do ambiente. Dá origem ao apartheid
social, promove o racismo e os conflitos étnicos, mina os direitos das
mulheres e, freqüentemente, precipita os países para confrontos
destrutivos entre nacionalidades. Desde os anos 90, tem vindo a estender
o seu domínio a todas as principais regiões do Mundo, incluindo a
América do Norte, a Europa Ocidental, os países do antigo bloco
soviético e os «Novos Países Industrializados» (NPI) do Sudeste Asiático
e do Extremo Oriente.
Esta crise a nível mundial é mais
devastadora do que a Grande Depressão dos anos 30. Tem conseqüências
geopolíticas de grande alcance; a perturbação econômica faz-se
acompanhar pelo desencadear de guerras regionais, a fratura de
sociedades nacionais e, nalguns casos, a total destruição de países
inteiros. Esta é, indubitavelmente, a crise econômica mais grave da
História Moderna.
A RECESSÃO DO PERÍODO DO PÓS-GUERRA-FRIA
Na ex-União Soviética, como conseqüência
direta do «tratamento econômico» nefasto do FMI iniciado em 1992, o
declínio econômico ultrapassou a queda na produção verificada no auge da
Segunda Guerra Mundial, após a ocupação alemã da Bielorrússia e de
partes da Ucrânia em 1941 e o intenso bombardeamento da infra-estrutura
industrial soviética. De uma situação de emprego total e relativa
estabilidade de preços nos anos 70 e 80 passou-se para um quadro de
subida em flecha da inflação, queda vertical dos salários reais e da
taxa de emprego e abandono dos programas de saúde. A cólera e a
tuberculose alastram a uma velocidade alarmante numa vasta área da
ex-União Soviética.
O modelo da ex-União Soviética repete-se
na Europa de Leste e nos Bálcãs. Umas após outras, as economias
nacionais desmoronam-se. Nos estados bálticos (Lituânia, Letônia e
Estónia), bem como nas repúblicas caucasianas da Armênia e do
Azerbaijão, verifica-se um declínio da produção industrial que atinge os
65%. Na Bulgária, as pensões de reforma tinham descido para dois
dólares por mês em 1997. O Banco Mundial admitiu que 90% dos búlgaros
vivem abaixo do limiar da pobreza, fixado por aquela instituição em 4
dólares por mês. Sem meios para pagarem luz, água e transportes, grupos
populacionais por toda a Europa de Leste e os Bálcãs vêem-se brutalmente
arredados da era moderna.
O FIM DOS «TIGRES ASIÁTICOS»
No leste da Ásia, a crise financeira de
1997 — marcada por ataques especulativos contra divisas nacionais —
contribuiu em grande medida para o fim dos chamados «tigres asiáticos»
(Indonésia, Tailândia e Coréia). Os acordos de assistência do FMI,
impostos logo após o colapso financeiro, tiveram como conseqüência
imediata o declínio abrupto do nível de vida das populações. Na Coréia,
na seqüência da «mediação» do FMI — decidida após consultas a alto nível
com os maiores bancos comerciais e financeiros do mundo — «uma média de
mais de 200 companhias por dia fecharam as suas portas [...] Por dia,
cerca de 4000 trabalhadores ficavam desempregados». Entretanto, na
Indonésia, num cenário de violentos confrontos nas ruas, os salários
praticados pelas fábricas ilegais nas zonas de exportação, que
empregavam mão-de-obra barata, desceram de 40 para 20 dólares por mês; e
o FMI insistiu na desindexação dos salários como forma de mitigar as
pressões inflacionárias.
Na China, com a privatização ou falência
obrigatória de milhares de empresas estatais, 35 milhões de
trabalhadores estão sob a ameaça de desemprego. Segundo uma estimativa
recente, existem cerca de 130 milhões de trabalhadores excedentes nas
zonas rurais da China. Por ironia, o Banco Mundial tinha previsto que,
com a adoção de reformas do «mercado livre», a pobreza na China desceria
para 2,7% no ano 2000.
POBREZA E PERTURBAÇÃO ECONÓMICA NO OCIDENTE
Já durante o período Reagan-Thatcher, as
duras medidas de austeridade implementadas tinham resultado na gradual
desintegração do Estado social. As medidas de «estabilização econômica»
(em princípio adotadas para «atenuar os males da inflação») contribuíram
para a queda do vencimento dos trabalhadores e para o enfraquecimento
do papel do Estado. Desde os anos 90, a terapia econômica aplicada nos
países desenvolvidos contém muitos dos ingredientes essenciais dos
programas de ajustamento estrutural impostos pelo FMI e pelo Banco
Mundial ao Terceiro Mundo e à Europa de Leste.
No entanto, em contraste com os países
em vias de desenvolvimento, as medidas políticas de reforma na Europa e
na América do Norte são impostas sem a mediação do FMI. A acumulação de
grandes dívidas públicas nos países ocidentais tem proporcionado às
elites financeiras uma alavanca política, bem como o poder de ditar as
políticas econômicas e sociais aos governos. Sob a capa do
neoliberalismo, as despesas públicas são reduzidas e os programas de
assistência social abandonados. As políticas estatais promovem a
desregulamentação do mercado de trabalho: desindexação dos salários,
emprego a tempo parcial, reforma antecipada e imposição de cortes
salariais «voluntários».
Por sua vez, a prática de desgaste — que
transfere o fardo social do desemprego para os grupos etários mais
jovens — contribuiu para impedir a entrada no mercado de trabalho a toda
uma geração. As regras da gestão de recursos humanos nos Estados Unidos
são: «'dar cabo' dos sindicatos, voltar os trabalhadores mais velhos
contra os mais novos, chamar os fura-greves, baixar os salários e acabar
com o seguro médico pago pelas empresas».
Desde os anos 80, uma grande parte da
mão-de-obra nos Estados Unidos tem vindo a ser desviada de postos de
trabalho bem remunerados e sindicalizados para empregos de salário
mínimo. «Terceiro-mundismo» de cidades ocidentais: a pobreza nos guetos e
zonas desfavorecidas da América é a vários títulos comparável com a
verificada no Terceiro Mundo. Embora a taxa de desemprego «oficial» dos
Estados Unidos tenha descido nos anos 90, o número de pessoas com
empregos a tempo parcial e mal remunerados subiu em flecha. Em
conseqüência do declínio nos postos de trabalho com salário mínimo,
grandes setores da população vêem-se completamente afastados do mercado
de trabalho: «O gume verdadeiramente selvagem da recessão fere o âmago
das comunidades e dos novos imigrantes em Los Angeles, onde as taxas de
desemprego triplicaram e não existe uma rede de segurança social. As
pessoas estão em queda livre e as suas vidas desintegram-se, com o
desaparecimento de empregos de salário mínimo».
Por outro lado, a reestruturação
econômica criou divisões profundas entre classes sociais e grupos
étnicos. O ambiente das grandes zonas metropolitanas caracteriza-se pelo
«apartheid social» : a paisagem urbana encontra-se compartimentada
segundo linhas sociais e étnicas. O Estado, por sua vez, é cada vez mais
repressivo na forma como gere os conflitos sociais e procura controlar
as manifestações de descontentamento da sociedade civil.
Com a onda de fusões corporativas,
downsizing e encerramento de fábricas, todas as categorias da força de
trabalho são afetadas. A recessão atinge a classe média e os escalões
superiores da força trabalho. Os orçamentos destinados à investigação
são reduzidos, cientistas, engenheiros e outros profissionais vão para o
desemprego e funcionários públicos superiores e gestores são forçados a
pedir a reforma antecipada...
Entretanto, as realizações do período inicial do pós-guerra têm vindo a ser anuladas através da suspensão dos planos de seguro de desemprego e da privatização dos fundos de pensões. Escolas e hospitais fecham as suas portas, criando-se assim as condições necessárias para a privatização total dos serviços sociais.
Entretanto, as realizações do período inicial do pós-guerra têm vindo a ser anuladas através da suspensão dos planos de seguro de desemprego e da privatização dos fundos de pensões. Escolas e hospitais fecham as suas portas, criando-se assim as condições necessárias para a privatização total dos serviços sociais.
UMA ECONOMIA CRIMINOSA FLORESCENTE
As reformas do «mercado livre» favorecem
o desenvolvimento de atividades ilícitas, bem como a concomitante
«internacionalização» de uma economia criminosa. Na América Latina e na
Europa de Leste, as organizações criminosas têm vindo a investir na
aquisição de bens do Estado ao abrigo dos programas de privatização
apoiados pelo FMI-Banco Mundial. Segundo as Nações Unidas, a receita
total a nível mundial das «organizações criminosas transnacionais» (OCT)
é da ordem de um milhão de bilhões de dólares, representando um
montante equivalente ao PIB (Produto Interno Bruto) do grupo de países
com baixo rendimento com uma população de cerca de 3 mil milhões de
pessoas. Esta estimativa das Nações Unidas abrange tráfico de
narcóticos, vendas de armamento, contrabando de materiais nucleares,
etc, assim como as receitas derivadas da economia de serviços
controlados pela máfia (prostituição, jogo, câmbios ilícitos, etc). O
que estes dados não transmitem adequadamente é a magnitude dos
investimentos de rotina em negócios «legítimos» por parte de
organizações criminosas, assim como o controlo significativo que estas
exercem sobre os recursos produtivos em muitas áreas da economia legal.
Os grupos criminosos colaboram
rotineiramente com empreendimentos legais através de investimentos numa
série de atividades «legítimas», as quais não somente lhes proporcionam
uma fachada para o branqueamento de dinheiro como também providenciam um
processo adequado para a acumulação de riqueza fora do âmbito da
economia criminosa. Segundo um observador, «os grupos de crime
organizado têm um melhor desempenho do que a maioria das empresas do
índice Fortune 500 [...] com organizações que se assemelham mais à
General Motors do que à tradicional máfia siciliana». Segundo um
depoimento prestado a um subcomitê do Congresso dos Estados Unidos por
Jim Moody, o diretor do FBI, as organizações criminosas na Rússia estão
«a cooperar com outros grupos criminosos estrangeiros, incluindo os
sediados em Itália e na Colômbia [...] a transição para o capitalismo
[na ex-União Soviética] proporcionou novas oportunidades rapidamente
exploradas pelas organizações criminosas».
BANQUEIROS DE WALL STREET NOS BASTIDORES
Tem vindo a desenvolver-se um « consenso
político »; por todo o mundo, os governos adotaram inequivocamente
objetivos de face neoliberal. As mesmas medidas econômicas são aplicadas
a nível mundial. Sob a jurisdição do FMI, do Banco Mundial e da
Organização Mundial de Comércio, as reformas criam um «ambiente
propício» para as atividades de bancos globais e empresas
multinacionais. Não se trata, todavia, de um sistema de mercado «livre»:
embora assente numa retórica neoliberal, o chamado « programa de
ajustamento estrutural » apoiado pelo acordo de Bretton Woods constitui
um novo enquadramento intervencionista.
No entanto, o FMI, o Banco Mundial e a
Organização Mundial de Comércio constituem meros órgãos burocráticos.
São organismos reguladores que operam sob uma capa intergovernamental e
se encontram comandados por poderosos interesses econômicos e
financeiros. Os banqueiros de Wall Street e os líderes do maior
conglomerado de empresas estão por detrás destas instituições globais.
Reúnem regularmente à porta fechada com o FMI, o Banco Mundial e a
Organização Mundial de Comércio, bem como em inúmeros pontos de encontro
internacionais. Nestas reuniões e sessões de consulta participam
igualmente os representantes de poderosos grupos de pressão de empresas
globais, tais como a Câmara Internacional de Comércio (CIC)
(International Chamber of Commerce — ICC), o Diálogo de Negócios
Transatlântico (DNT) (Trans Atlantic Business Dialogue — TABD) (que
reúne nos seus encontros anuais os líderes do maior conglomerado de
empresas do Ocidente com políticos e funcionários da Organização Mundial
de Comércio), o Conselho de Comércio Internacional dos Estados Unidos
(United States Council for International Business — USCIB), o Fórum
Econômico Mundial de Davos, o Instituto Internacional de Finanças (IIF)
sediado em Washington e que representa os maiores bancos e instituições
financeiras do mundo, etc. Outras organizações «semi-secretas» — que
desempenham um papel importante na definição das instituições da Nova
Ordem Mundial — incluem a Comissão Trilateral, o grupo Bildeberg e o
Conselho para as Relações Estrangeiras.
A ECONOMIA DA MÃO-DE-OBRA BARATA
A globalização da pobreza está a
processar-se durante um período de rápidos avanços tecnológicos e
científicos. Enquanto estes últimos contribuem para o incremento
substancial da capacidade potencial do sistema Econômico de produzir os
bens e serviços necessários, os níveis acrescentados de produtividade
não se traduzem numa correspondente redução dos níveis de pobreza
global. No início de um novo milênio, este declínio global do nível de
vida das populações não resulta de uma escassez de recursos produtivos.
Pelo contrário, o downsizing, a
reestruturação corporativa e a transferência da produção para locais de
mão-de-obra barata no Terceiro Mundo têm vindo a conduzir ao aumento do
desemprego e à redução dos salários dos trabalhadores urbanos e rurais.
Esta nova ordem econômica sustenta-se com a pobreza humana e com a
mão-de-obra barata : os altos níveis de desemprego nacional, tanto em
países desenvolvidos como em países em vias de desenvolvimento,
contribuíram para fazer baixar os salários reais. O desemprego foi
internacionalizado, com o capital migrando de um país para outro numa
busca contínua de fontes de mão-de-obra mais barata. Segundo a
Organização Internacional do Trabalho (OIT), o desemprego afeta mil
milhões de pessoas a nível mundial, ou seja, cerca de um terço da força
de trabalho global. Os mercados de trabalho nacionais deixaram de ser
segregados: os trabalhadores de diferentes países encontram-se em clara
concorrência uns com os outros. Com a desregulamentação dos mercados de
trabalho, os direitos dos trabalhadores são anulados.
O desemprego global funciona como uma
alavanca reguladora dos custos trabalhistas a nível mundial: a
abundância de mão-de-obra barata no Terceiro Mundo e no ex-Bloco de
Leste contribui para o abaixamento dos salários nos países
desenvolvidos. Praticamente todas as categorias da força de trabalho
(sem excluir os trabalhadores altamente qualificados, os profissionais
liberais e os cientistas) são afetadas; simultaneamente, a concorrência
pelos postos de trabalho fomenta divisões sociais baseadas em classe
social, grupo étnico, sexo e idade.
MICROEFICIÊNCIA, MACROINSUFICIÊNCIA
As empresas globais minimizam os custos
do trabalho a nível mundial. Os salários reais no Terceiro Mundo e na
Europa de Leste chegam a ser setenta vezes inferiores aos dos EUA, da
Europa Ocidental ou do Japão: as possibilidades de produção são
praticamente inesgotáveis, dada a grande quantidade de trabalhadores
pobres em todo o mundo.
Enquanto as teorias econômicas vigentes
acentuam a «distribuição eficaz» dos «escassos recursos» da sociedade,
as duras realidades sociais põem em questão as conseqüências destes
meios de distribuição. Assiste-se ao encerramento de fábricas, pequenas e
médias empresas são empurradas para a falência, trabalhadores
qualificados e funcionários públicos são despedidos e o capital humano e
material é desperdiçado em nome da «eficiência». O impulso para a
utilização «eficaz» dos recursos da sociedade ao nível microeconômico
conduz a uma situação diametralmente oposta ao nível macroeconômico.
Quando existem grandes quantidades de capacidade industrial
desaproveitada e milhões de trabalhadores desempregados, os recursos não
estão sendo utilizados eficientemente. O capitalismo moderno parece
totalmente incapaz de mobilizar estes recursos humanos e materiais
desaproveitados.
ACUMULAÇÃO DE RIQUEZA, DISTORÇÃO DA PRODUÇÃO
Esta reestruturação econômica global
promove a estagnação no fornecimento dos bens e serviços necessários e
simultaneamente desvia os recursos existentes para investimentos
lucrativos na economia dos bens de luxo. Ao mesmo tempo, com o
esgotamento da criação de capital em atividades produtivas, o lucro é
cada vez mais freqüentemente procurado em transações especulativas e
fraudulentas, o que, por sua vez, contribui para a ocorrência de
perturbações nos principais mercados financeiros mundiais.
Uma minoria social privilegiada tem
vindo a acumular vastas fortunas à custa da grande maioria da população.
O número de bilionários nos EUA subiu de 13 em 1982 para 149 em 1996 e
ultrapassou os 300 em 2000. O «Clube Global de Bilionários» (com cerca
de 450 sócios) é detentor de uma riqueza total que excede em muito a
soma dos produtos internos brutos do grupo de países de baixo
rendimento, com 59% da população mundial (ver quadro 1.1). A riqueza
pessoal da família Walton, do noroeste do Arkansas, proprietários da
cadeia de lojas Wal-Mart (85 mil milhões de dólares) — a herdeira, Alice
Walton, os seus irmãos Robson, John e Jim e a mãe, Helen — atinge mais
do dobro do PIB do Bangladesh (33,4 mil milhões de dólares), com uma
população de 127 milhões de pessoas e um rendimento anual per capita de
260 dólares.
A acrescentar a este quadro, o processo
de acumulação de riqueza desenrola-se cada vez mais freqüentemente à
margem da economia real, divorciado de atividades produtivas e
comerciais fidedignas. «O sucesso no mercado de ações de Wall Street [ou
seja, das transações especulativas] foi responsável pela maior parte
dos bilionários no ano passado [1996]». Por sua vez, os milhares de
milhões de dólares adquiridos através destas transações especulativas
são desviados para contas confidenciais em mais de 50 paraísos fiscais
offshore em todo o mundo. Segundo uma estimativa do banco de
investimentos americano Merrill Lynch, os depósitos individuais geridos
através de bancos privados em paraísos fiscais offshore totalizam cerca
de 3,3 mil bilhões de dólares. O FMI calcula que os bens offshore de
empresas e de indivíduos atinjam os 5,5 mil bilhões de dólares, um valor
equivalente a 25% do rendimento total mundial. Nos anos 90, as fortunas
das elites do Terceiro Mundo, depositadas em contas secretas e, em
grande medida, obtidas por meios ilícitos, foram calculadas em cerca de
600 mil milhões de dólares, estando um terço desta quantia depositado na
Suíça.
PRODUÇÃO EXCEDENTE: AUMENTO DA OFERTA, DIMINUIÇÃO DA PROCURA
O aumento da produção no sistema do
capitalismo global resulta da «minimização do emprego» e do arrocho dos
salários dos trabalhadores. Este processo, por sua vez, afeta os níveis
de procura por parte do consumidor de bens e serviços necessários:
capacidade ilimitada de produção, capacidade limitada de consumo. Numa
economia global de mão-de-obra barata, o processo de aumento da produção
(através de downsizing, dispensas coletivas e abaixamento de salários)
contribui para reduzir a capacidade de consumo da sociedade.
Por conseguinte, a tendência é para a
produção excedente a uma escala jamais vista. Por outras palavras, a
expansão corporativa neste sistema só pode verificar-se através da
concomitante eliminação da capacidade produtiva inativa, nomeadamente
através da falência e da liquidação de «empresas excedentes». Estas
últimas são preteridas em favor da produção mecanizada mais avançada: a
totalidade de certas áreas da indústria encontra-se inativa, a economia
de vastas regiões é afetada, e só está a ser utilizada uma parte do
potencial agrícola mundial.
Esta oferta global excessiva de bens de
consumo é uma conseqüência direta do declínio no poder de compra e do
aumento dos níveis de pobreza. Este último resulta também da minimização
dos custos de trabalho e do emprego a nível mundial sob o impacto das
reformas do FMI, do Banco Mundial e da Organização Mundial de Comércio.
Por sua vez, o excesso de oferta
contribui para acentuar o abaixamento das receitas dos produtores
diretos, através da desativação da capacidade excedente de produção.
Contrariamente à «Lei de Say», arvorada pela corrente neoliberal, a
oferta não cria a sua própria procura. Desde o início dos anos 80, o
excesso de produção de bens de consumo, com a conseqüente queda dos
preços (reais) destes bens, tem sido causa de grandes perturbações,
especialmente entre os produtores primários do Terceiro Mundo, mas
também na área da manufatura.
INTEGRAÇÃO GLOBAL, DESINTEGRAÇÃO LOCAL
Nos países em vias de desenvolvimento, a
totalidade de algumas áreas da indústria fornecedora do mercado interno
é empurrada para a falência, em cumprimento de ordens do Banco Mundial e
do FMI. O sector urbano informal — que, tradicionalmente, desempenha um
papel importante na criação de emprego — foi minado, em conseqüência da
desvalorização de divisas, da liberalização das importações e da
política de dumping. Na África subsaariana, por exemplo, o sector
informal da indústria do pronto-a-vestir foi completamente destruído e
substituído pelo mercado de roupas em segunda mão (importadas do
Ocidente a 80 dólares a tonelada).
Contra este pano de fundo de estagnação
econômica (com taxas negativas de crescimento registradas na Europa de
Leste, na ex-União Soviética e na África subsaariana), as maiores
empresas mundiais beneficiam de um crescimento sem precedentes e da
expansão do seu quinhão do mercado global. No entanto, este processo
desenrolou-se em grande medida através do afastamento dos sistemas
produtivos preexistentes — ou seja, à custa dos produtores locais,
regionais e nacionais. A expansão e o «lucro» das maiores empresas
mundiais assentam numa contração global do poder de compra e no
empobrecimento de vastos setores da população mundial. Por sua vez, as
reformas do «mercado livre» contribuíram de forma brutal para a abertura
de novas fronteiras econômicas, simultaneamente garantindo o «lucro»
através da imposição de salários baixíssimos e da desregulamentação do
mercado de trabalho. Neste processo, a pobreza é um fator positivo da
oferta. A gama de reformas do FMI--Banco Mundial-Organização Mundial de
Comércio imposta ao nível mundial desempenha um papel decisivo na
regulamentação dos custos do trabalho em nome do capital corporativo.
Trata-se da lei da sobrevivência do mais
forte: as empresas com as tecnologias mais avançadas, ou as que podem
impor salários mais baixos, sobrevivem numa economia mundial marcada
pela produção excedente. Embora o espírito do liberalismo anglo-saxônico
se empenhe na «promoção da concorrência», na prática as medidas
políticas macroeconômicas do G-7 (através de controles fiscais e
monetários apertados) têm promovido uma onda de fusões corporativas e de
aquisições, assim como a falência de pequenas e médias empresas.
A DESTRUIÇÃO DA ECONOMIA LOCAL
Ao nível local, as pequenas e médias
empresas são empurradas para a falência ou obrigadas a produzir para um
distribuidor global. Por sua vez, as grandes multinacionais
apoderaram-se dos mercados ao nível local através do sistema de
franchising corporativo. Este processo permite ao grande capital
corporativo (o franchiser ) obter o controlo dos recursos humanos, da
mão-de-obra barata e da capacidade empresarial. Uma grande parte dos
ganhos das pequenas empresas locais e/ou dos retalhistas é assim retida
pela sociedade global, enquanto a maior parte dos custos do investimento
cabe ao produtor independente (o franchisee ).
Observa-se um processo paralelo na
Europa Ocidental. Com o tratado de Maastricht, o processo de
reestruturação política na União Européia tem cada vez mais em
consideração interesses financeiros dominantes, à custa da unidade das
sociedades européias. Neste sistema, o poder estatal tem deliberadamente
vindo a sancionar o desenvolvimento de monopólios privados: o grande
capital destrói o pequeno capital em todas as formas de que este se
reveste. Com a tendência para a formação de blocos econômicos tanto na
Europa como na América do Norte, assiste-se à eliminação do empresário
ao nível regional ou local, a vida nas cidades sofre transformações e a
propriedade privada a pequena escala desaparece completamente. O
«comércio livre» e a integração econômica proporcionam uma maior
mobilidade às empresas globais enquanto, simultaneamente, impedem
(através de barreiras institucionais e não tarifárias) o movimento do
pequeno capital a nível local. Embora aparente unidade política, a
«integração econômica» (sob o domínio da empresa global) promove com
freqüência fações e lutas sociais entre sociedades nacionais e no seio
destas.
GUERRA E GLOBALIZAÇÃO
A imposição de reformas macroeconômicas e
de transações comerciais sob a supervisão do FMI, do Banco Mundial e da
Organização Mundial de Comércio (OMC) destina-se a recolonizar certos
países de forma «pacífica» através da manipulação deliberada das forças
de mercado. Embora não requeira explicitamente o uso de força, a
aplicação brutal de reformas econômicas constitui, no entanto, uma forma
de guerra. Os perigos da guerra, a um nível mais geral, devem ser
compreendidos. A guerra e a globalização não são questões estanques.
O que acontece aos países que se recusam
a «abrir-se» aos bancos ocidentais e às empresas multinacionais em
cumprimento das ordens da Organização Mundial de Comércio? Os serviços
de informação das potências militares ocidentais e dos seus vários
órgãos burocráticos têm contactos rotineiros com o poder financeiro
instituído. O FMI, o Banco Mundial e a OMC — que policiam as reformas
econômicas ao nível de país — colaboram igualmente com a NATO nas suas
várias missões de «manutenção de paz», já para não referir o
financiamento de reconstrução «pós-conflito» sob os auspícios das
instituições de Bretton Woods.
No início do terceiro milênio, a guerra e
o «mercado livre» andam de mãos dadas. A guerra não necessita da OMC ou
de um tratado de investimento multilateral (ou seja, um MAI —
Multilateral Investment Treaty) entrincheirado no direito internacional.
A guerra é o «MAI» de último recurso. A guerra destrói fisicamente o
que não foi desmantelado através da desregulamentação, da privatização e
da imposição de reformas do «mercado livre». A total colonização
através da guerra e a instalação de protetorados ocidentais equivalem à
concessão de «tratamento nacional» aos bancos ocidentais e às empresas
multinacionais (como estipulado pela OMC) em todos os setores de
atividade. A «diplomacia dos mísseis» é uma réplica da «diplomacia dos
canhões» utilizada para implementar o «comércio livre» no século XIX. A
Missão Cushing dos EUA à China em 1844 (na seqüência das Guerras do
Ópio) foi um aviso ao governo imperial chinês de que «a recusa em ceder
às exigências americanas poderia considerar-se uma declaração de
guerra».
O DESARMAMENTO DA NOVA ORDEM MUNDIAL
A ideologia do mercado «livre» defende
uma forma nova e brutal de intervencionismo do Estado, assente na
interferência deliberada nas forças de mercado. Suprimindo os direitos
dos cidadãos, o «comércio livre», sob a égide da Organização Mundial de
Comércio (OMC) concede «direitos inalienáveis» aos maiores bancos do
mundo e às empresas globais. O processo de implementação de acordos
internacionais, conduzido pela Organização Mundial de Comércio ao nível
nacional e internacional, passa invariavelmente ao lado do processo
democrático. Por outras palavras, ao conceder poderes alargados ao poder
financeiro instituído, os artigos da OMC ameaçam conduzir ao
enfraquecimento de sociedades nacionais (ver capítulo 1).
A Nova Ordem Mundial baseia-se no «falso
consenso» de Washington e de Wall Street, que impõe o «sistema de
mercado livre» como a única opção possível na senda ditada pelo avanço
da «prosperidade global». Todos os partidos políticos, sem exceção, os
Verdes, os Sociais-Democratas e os partidos ex-Comunistas, aceitam agora
este consenso.
As ligações insidiosas existentes entre
políticos e funcionários internacionais e poderosos interesses
financeiros devem ser expostas. Para se alcançarem mudanças
significativas, as instituições estatais e as organizações
intergovernamentais têm de ser libertas das garras do poder financeiro
instituído. É igualmente necessário democratizar o sistema Econômico e
as suas estruturas de gestão e propriedade, por resolutamente em questão
a concentração óbvia da propriedade e das fortunas privadas, desarmar
os mercados financeiros, suspender os negócios especulativos, por fim ao
branqueamento de dinheiro, desmantelar o sistema bancário offshore ,
redistribuir os rendimentos e a riqueza, restaurar os direitos dos
produtores diretos e reconstruir o sistema de segurança social do
Estado.
No entanto, é necessário ter em conta
que as estruturas militares e de segurança ocidentais caucionam e apóiam
os interesses econômicos e financeiros dominantes — ou seja, tanto a
constituição como o exercício da força militar se destinam a impor o
«comércio livre». O Pentágono é uma sucursal de Wall Street; a NATO
coordena as suas operações militares com o Banco Mundial e as medidas de
intervenção do FMI, e vice-versa. De forma consistente, os organismos
de segurança e defesa da aliança militar ocidental, em colaboração com
os vários governos e órgãos burocráticos intergovernamentais (tais como o
FMI, o Banco Mundial e a OMC) partilham um entendimento comum, um
consenso ideológico e igual empenho na Nova Ordem Mundial. Por outras
palavras, a campanha internacional contra a «globalização» deve ser
integrada numa coligação mais alargada de forças sociais empenhadas no
desmantelamento do complexo militar-industrial, da NATO e das
instituições da defesa, nas quais se incluem os serviços policiais, de
informação e de segurança.
Os meios de comunicação globais fabricam
as notícias e distorcem abertamente o curso dos acontecimentos
mundiais. Esta «falsa consciência» que se infiltra na nossa sociedade
impede o debate crítico e mascara a verdade. Em última análise, nega o
acesso a um entendimento coletivo dos mecanismos de um sistema Econômico
que está a destruir a vida das pessoas. A única promessa do «mercado
livre» é um mundo de agricultores sem terra, fábricas fechadas,
trabalhadores sem emprego e programas sociais destruídos, com o «amargo
remédio Econômico» da OMC e do FMI a constituírem a única receita. Temos
a obrigação de restaurar a verdade, denunciar os meios de comunicação
de massas controlados pelas empresas, devolver a soberania aos nossos
países e aos povos dos nossos países e desarmar e abolir o capitalismo
global.
Esta luta deve ter uma ampla base
democrática de sustentação que abranja todos os setores da sociedade a
todos os níveis, em todos os países, unindo num só ímpeto trabalhadores,
agricultores, produtores independentes, pequenos negociantes,
profissionais liberais, artistas, funcionários públicos, membros do
clero, estudantes e intelectuais. Os elementos de setores diversos devem
unir-se, os grupos com uma causa específica devem dar-se as mãos num
entendimento comum e coletivo do poder destrutivo e empobrecedor deste
sistema Econômico. A globalização desta luta é fundamental e requer um
grau de solidariedade e internacionalismo sem precedentes na História
mundial. Este sistema Econômico global é alimentado pela divisão social
entre países e no seio destes. A unidade de objetivos e a coordenação ao
nível mundial entre os diversos grupos são cruciais. É necessário um
ímpeto de grande magnitude que congregue os movimentos sociais nas
principais partes do Mundo num objetivo comum e no empenhamento para a
eliminação da pobreza e a obtenção de uma paz mundial duradoura.
Michel Chossudovsky,
diretor do Centre for Research on Globalization.
diretor do Centre for Research on Globalization.
Santiago, 21 de novembro de 2003